Luiz Gonzaga Pinto da Gama, pseudônimos afro, Getulino e Barrabaz, nasceu em Salvador, em 21 de junho de 1830, filho de Luísa Mahin, africana livre vinda da Costa da Mina, que ganhava a vida fazendo quitandas, e de um fidalgo português que vivia em Salvador, cujo nome o poeta nunca revelou. Em 1837, Luiza Mahin deixa a cidade e parte em direção ao Rio de Janeiro, ficando o filho aos cuidados do pai. Este, segundo o próprio Gama em carta a Lúcio de Mendonça*, era um homem de posses, apaixonado pela pesca, pela caça e principalmente pelas cartas. Vivia de uma herança que havia recebido em 1838 e, dois anos depois, já se encontrava em plena miséria. Em novembro deste mesmo ano, aos dez anos de idade, o menino Luiz Gama foi levado pelo pai a bordo do navio “Saraiva”, e lá vendido como escravo.
Dias depois, ao desembarcar no Rio de Janeiro, foi levado para a casa de um negociante português que negociava escravos sob comissão. No mês seguinte, foi novamente vendido, junto com um lote de “cento e tantos escravos”, ao “negociante e contrabandista” Antônio Pereira Cardoso, que os levou para São Paulo. Lá, seria novamente posto a venda, porém tal fato não ocorreu. Os escravos vindos da Bahia eram tidos como “desordeiros” e “revolucionários”, devido ao marco histórico que foi a Revolta dos Malês, ocorrida em Salvador em 1835, da qual a mãe de Gama, Luiza Mahin, teria participado. Depois disso, os cativos oriundos dessa cidade eram preteridos pelos compradores, como deixa transparecer o depoimento do poeta: “fui escolhido por muitos compradores, nesta cidade, em Jundiaí e Campinas; e por todos repelido, como se repelem cousas ruins, pelo simples fato de ser eu ‘baiano’”. O suposto comprador, o Sr. Francisco Egídio de Souza Aranha, pai do Conde de Três Rios, estabeleceu com Gama o seguinte diálogo, também ilustrativo da repulsa dos senhores pelos escravizados baianos:
– Hás de ser um bom pajem para os meus meninos; dize-me: onde nasceste?
– Na Bahia, respondi eu.
– Baiano? – exclamou admirado o excelente velho.
– Nem de graça o quero. Já não foi por bom que o venderam tão pequeno. (Apud MENUCCI,1938)
Sendo assim, permaneceu na casa do senhor Cardoso, onde foi encarregado dos serviços domésticos, tendo aprendido com outro escravo, também baiano, o ofício de sapateiro. Ali se estabeleceu, aos dezessete anos de idade, o primeiro contato de Luiz Gama com as letras, através de um hóspede que viera de Campinas para a capital com o objetivo de estudar.
Em 1848, Gama fugiu da casa de seus senhores, tendo conseguido, logo depois, documentos que confirmavam a sua liberdade, uma vez que era filho de uma negra liberta. Em seguida, foi “assentar praça”, tendo sido soldado durante seis anos. Durante esse período, nas horas vagas, trabalhava como copista, escrevendo para o Major Benedito Antônio Coelho Neto, que viria a ser depois um dos numerosos amigos do poeta. Em 1854, foi dispensado por ato de insubordinação, porque havia ameaçado “um oficial insolente” que o insultara. Devido ao fato, ficou preso por 39 dias.
Em 1856, foi nomeado amanuense da Secretaria da Polícia, onde serviu até 1868, quando foi demitido por “bem do serviço público”. Para esclarecer o motivo real da demissão, o poeta faz a seguinte confissão em carta ao amigo Lúcio de Mendonça:
A turbulência consistia em fazer eu parte do Partido Liberal; e, pela imprensa e pelas urnas, pugnar pela vitória de minhas e suas ideias, e promover processos em favor de pessoas livres criminosamente escravizadas; e auxiliar licitamente, na medida de meus esforços, a alforria de escravos, porque detesto o cativeiro e todos os senhores, principalmente os reis. (Gama, apud Menucci, 1938)
Ainda a respeito da Carta a Lúcio de Mendonça, afirma Roberto Schwarz:
A carta mostra – à maneira ágil do folhetim romântico – uma vida rocambolesca e um destino excepcional. Pensando melhor, entretanto, se nota que mesmo os episódios mais surpreendentes decorrem das grandes linhas da sociedade brasileira. Como no bom romance realista, a peripécia inesperada põe a nu a lógica e as virtualidades de uma formação social, mostrando o que há de regra na exceção, de normal no exótico. O percurso biográfico incrível, o escândalo das situações, dos problemas morais e ideológicos, fazem ver um mundo sui generis, pressentido e recalcado. O nosso europeísmo de fachada, para inglês ver – e não o europeísmo exigente – fizeram que só em mínima parte essas relações fossem exploradas e superadas na reflexão crítica. Por esse lado, a carta faz pensar na literatura brasileira que poderia ter sido e não foi.
E prossegue:
Assim, há uma dificuldade autêntica em entender o amor extremoso do pai que vende o filho como escravo para escapar a um aperto de dinheiro. Qual o sentido atrás das lágrimas copiosas com que se separam uns dos outros – o menino e a família do negociante de africanos que o havia comprado e agora o revendia? O que significaria a estima votada a Luiz Gama pelo seu proprietário seguinte, o negociante e o contrabandista alferes fulano de tal, que mais tarde seria preso por matar de fome alguns escravos em cárcere privado? O leitor das Memórias póstumas de Brás Cubas estará lembrando o cunhado Cotrim , que contrabandeava com escravos e os mandava surrar no calabouço até sangrarem, ao mesmo tempo que era pagador meticuloso, pai amantíssimo e destacado filantropo. Humor negro à parte, são situações reais, com problemática afetiva e ideológica própria, na qual se explicita, na parte pouco publicada, o significado humano da organização social do Império. (Schwarz, 1989, p. 137)
Em 1859, Gama publicou Primeiras trovas burlescas de Getulino, no qual consta o famoso poema “Quem sou eu”, mais conhecido como Bodarrada, em que expõe o preconceito de cor na sociedade brasileira. O poema foi escrito em resposta ao apelido que os intelectuais da época tentaram lhe impor: bode – termo usado de forma depreciativa para designar os negros mais claros. A respeito desse poema, Brookshaw (1983) faz o seguinte comentário: “Gama faz abertamente referência a si próprio como negro, dirigindo sua crítica a todos os descendentes afro-brasileiros que tentavam escapar de sua origem ocultando-se atrás de uma máscara de falsa brancura”.
Também como jornalista, Luiz Gama teve uma atuação política bastante intensa: foi aprendiz de tipógrafo do jornal O Ipiranga, e redator do Radical Paulistano, no qual colaboraram, entre outros, Castro Alves, Joaquim Nabuco e Rui Barbosa. Foi ainda responsável pela redação de O Polichinelo – primeiro periódico político satírico da cidade de São Paulo, o que faz Alberto Faria atribuir a Luiz Gama a fundação da imprensa humorística paulistana. Nessa linha, atuaria ainda em O Cabrião e O Diabo Coxo.
Nos anos 1860, o advogado autodidata Luiz Gama se esforçava para tratar dos casos de escravizações ilegais e de abolições individuais e coletivas do Estado de São Paulo. A respeito da profissão que abraçava, Gama confessa aos leitores paulistanos: “Eu advogo de graça, por dedicação sincera à causa dos desgraçados; não pretendo lucros, não temo represálias”. (Correio Paulistano, 20 de nov. de 1869). Segundo consta, Gama teria sido o responsável direto pela liberdade de aproximadamente quinhentos escravizados.
Além de advogar, Gama realizava conferências e publicava polêmicos artigos nos quais explicitava seus ideais abolicionistas, motivos pelos quais era perseguido e ameaçado de morte. Em um deles, publicado no Correio Paulistano, em 03/12/1869, o poeta discorre sobre a morte de um senhor de terras, pelas mãos de quatro dos escravos que possuía. Depois do fato, os cativos se apresentaram na delegacia, e lá teriam sido linchados pela população. Sobre a atitude daqueles que assassinaram os escravos, ou as “quatro ideias” (como Gama os chama), o poeta comenta: “Miseráveis; ignoram que o mais glorioso é morrer livre numa forca, ou dilacerado pelos cães na praça pública, do que banquetear-se com os Neros da escravidão”.
Liberal exaltado, foi o primeiro negro brasileiro a lutar contra os ideais de branqueamento da sociedade e pelo fim da escravidão. Mesmo debilitado pela doença, saía carregado em uma maca, para atender seus clientes desejosos da liberdade. Faleceu em São Paulo, em 24 de agosto de 1882, deixando uma emocionante carta-testamento ao filho, que se configura para nós, seus leitores de hoje, como vivo exemplo de homem público e literato que, mesmo diante das vicissitudes da vida, não abandona seus ideais.